Escrevo e não dá certo. Faço novamente. Desânimo e ansiedade, mas não posso
desistir. Os tropeços vêm antes do salto mortal. Não posso me aborrecer com as
críticas, tenho que usá-las a meu favor, para continuar minha busca. Deleto, deleto,
deleto. Não tenho estilo, as ideias derramam, mas não consigo moldá-las. Mas
por que continuo? É que não só desejo me transformar em artista. Estes
ensaios me salvam. Este livro é um erro e chato por ser muito descritivo.
Assim nem parece literatura! Mas, tentarei revisá-lo outra vez e costurar outra
roupagem.
O livro que quero escrever é uma experiência de quem acha que pode ser
um escritor um dia. Meu Deus, que objeto não identificado é este que
estou escrevendo. Parece que tem vida própria. Chega de falar de mim.
Quero falar dela...
***
Ele morria de sono. Acabou de escrever alguma coisa no computador.
“Meu Deus, o que foi que eu fiz?”.
Depois, deitou na cama. A vontade de escrever um pensamento foi
mais forte que o cansaço e o sono. Pegou o caderno, caneta e começou a
escrever: “INSPIRAÇÃO: 3. Qualquer estímulo ao pensamento ou a
atividade criadora. 6. Entusiasmo poético; estro. 7, teol. Moção divina que, segundo a crença
cristã, teria
sido dirigida aos
autores dos livros da bíblia.”(Aurélio).
Concluiu que Sophie é esse suspiro divino, que o
atormente e o fascina.
***
***
PARTE I
Observo a moça imperceptível de longe. Antes, a
via sair de casa para trabalhar,
ir à faculdade e quando corria para manter a forma. Agora, vejo-a com
a família. Sempre
brinca com
os filhos e namora
o marido. Montei na parede
do quarto, um
painel com
fotos suas
em preto
e branco, embaçadas de propósito.
É assim que
a vejo realmente. Precisa
abstrair, para olhar a sua beleza. Confesso que até
inventei uma fantasia erótica com ela, que nunca se concretizou...
Nunca interferi na sua vida, só a espio. Quero conhecê-la e saber
o que pensa.
As joias que ganhava dos amantes vendia e investia nos
estudos. Acreditava que
se não estava prejudicando ninguém, poderia
fazer o que
quisesse (quiser). A vida era dela, afinal
de contas. Sentia medo
da loucura, é seu
temor primeiro.
Lembrava-se sempre dos moleques da rua
onde mora
que implicavam com uma mendiga louca,
chamando-a de fedorenta. Os adultos riam e alguns
permitiam aquela situação degradante.
Escrevi-lhe, uma vez, um bilhete.
Tive uma surpresa logo
depois: “Sei que é um
voyeur. Tem esse
poder, sei disso. Gosto
de ser observada por
você, fico excitada, apesar
de amar meu marido. Observa-me desde
menina. Mas
não ouse meter-se no meu caminho.
Acabo com você,
num piscar de olhos.
Você conhece a minha
intimidade, sem
me tocar.
Sabe de coisas, que
nem meu
marido, conhece. Isso
é tão interessante e estimulante. Não
é só você, que sabe tudo sobre mim.
Conheço toda sua
vida. Sou uma voyeur,
também. Quer
escrever um livro sobre mim, mas tenha cuidado com que escreve...”.
Ela é humana, isso me fascina. Imoral,
sensual, racional,
boa filha, mãe
carinhosa, apaixonada pelo
marido, excelente
profissional e ambiciosa.
No armário escondeu chocolates e caixas
de bombons. Adorava comê-los, não repartia com
ninguém. Uma vez
esqueceu, por muito
tempo, que
tinha uma barra
de chocolate no armário.
Ela apodreceu. “Tanta
gente passando fome
e eu deixei apodrecer
uma barra de chocolate
no armário”.
Quando saiu com um namorado, estava sem
calcinha. Ele nunca poderia imaginar que
aquela moça vestida discretamente, pudesse estar sem a roupa íntima. Ao ver, ficou surpreso. Nunca mais se
esqueceu da noite inesquecível,
que teve com
aquela moça aparentemente
sem sal.
Sophie sonha sempre o mesmo pesadelo:
“Um corpo de mulher
estirado num terreno baldio. De repente,
aparecem vários urubus
com rostos
de homens barbados
e com dentes
enormes e afiados.
Começam a devorá-lo, principalmente, as nádegas da mulher.
Engraçado, desde
que me
entendo por gente,
sempre sonhei com
isso.”
Recordava-se da
irmã mais velha,
que morreu num acidente
de carro. O velório
foi muito triste.
A mãe chorava muito,
o pai a consolava e chorava também. Ela
estava apática, seu
rosto estava seco.
Os vizinhos fuxicavam que ela não gostava da irmã. Todos
estavam errados, ela a amava muito.
PARTE II
Eu a chamei
de Sophie.
Trabalhava como secretária num escritório,
que ficava na cobertura
de um dos prédios
mais importantes
do centro da cidade.
A janela ampla
mostrava toda a Baía
de Guanabara. Ela pensava que esse escritório deveria ser
dela já que
era mais
inteligente e capaz
que o chefe,
Otávio Ferraz de Albuquerque, que se
achava o senhor do mundo.
Quando saía com seu
escolhido, abusava da sensualidade. Ninguém poderia
imaginar que
aquela moça aparentemente
sem sal,
poderia tomar
atitudes tão
avançadas e possuir uma volúpia
tão à flor
da pele. Um
dia, um
amigo contou as “aventuras
secretas”, que teve com
Sophie para Otávio. Ele
ficou curioso, não
dava nada por
ela. Começou a se insinuar
e Sophie não gostou, o chefe não era o
escolhido. Ele insistia, ela
dizia não. Recalcado porque uma mulher
de aparência tão
comum não
lhe deu bola,
chamou-a de vadia. Sophie apenas
sorriu, disse que não
tinha nada
a ver com isso e o mandou pastar. O
executivo ficou sem
ação. Era verdade. Só teve força para dizer:–
Saia daqui agora,
vagabunda!
Ao ir embora,
ela pensou: “...um
dia terei um
escritório igual
ou melhor”.
Sophie não ficou preocupada.
Pediu ajuda a um
antigo amante
rico, que se
tornou amigo, para
lhe arranjar um emprego melhor. Conheceu-o quando
trabalhava como recepcionista.
O primeiro encontro
deles foi no elevador. Ela o olhou sensualmente
e começou a passar o batom
nos lábios.
No primeiro momento,
o homem não
a tinha notado. Quando
a percebeu, desejou-a ali mesmo. Tiveram alguns
encontros e acabaram a relação sem brigas.
Só recorre a um
conhecido importante
em último caso. Não abusa. Mantém sempre
o contato, envia cartão
nas festas de finais
de ano e aniversário.
Acredita que é bom
cultivar boas relações
sociais e afetivas, rendem muitos frutos tanto profissional como pessoalmente.
Ela também
sempre ajuda
os que precisam. Conseguiu um emprego muito melhor do
que o anterior.
O seu amigo
ficou feliz em
empregá-la. Sabia que estava fazendo um bom negócio, ela era ótima profissional.
Sophie estava muito bem financeiramente. Montou uma confeitaria,
que era
o sonho dos pais
e comprou uma casa confortável
para eles. Mas faltava-lhe alguma coisa,
sentia-se ainda incompleta.
III
Meses depois se apaixonou por
um rapaz
humilde. Era
empregado dos seus
pais na confeitaria.
Encontrou-o pela primeira
vez quando
ele foi à confeitaria
para arranjar trabalho. Estava com olhar cansado por procurar emprego o dia inteiro. Sophie olhou para
o rosto cansado:
“Esse é o homem
da minha vida”.
No início do romance
ele se achava inferior.
Queria até terminar
o namoro para não prejudicá-la. Fugiu. Foi morar
no pequeno sítio
de um tio,
que ficava muito
longe da cidade.
Ela foi atrás
dele. Ajudou o rapaz, custeando seus estudos.
Enfrentaram, no início, muitos preconceitos
das respectivas famílias, amigos e colegas,
mas depois
todos perceberam que
foram feitos um
para o outro.
Atualmente ele é um
renomado professor universitário
de Sociologia e ela
uma executiva de sucesso.
Têm três filhos,
um adotado, como
ela sempre
planejou. Aliás, nada saiu errado para Sophie.
Eu queria ser
determinado e racional
como ela.
Não consegui me
civilizar, sou uma besta
preguiçosa.
Quando nos encontramos na rua,
ela me
olha como
se estivesse querendo me desvendar.
Sinto uma mistura de medo
e desejo. Só
nos olhamos. Nunca
passou disto.
****
Quando acordou, estava inspirado: “escreverei um
livro”. Só
não sabia como,
estava obsessivo.
Pela janela da frente,
Sophie observava o vizinho e escrevia no
diário:
“Apesar de ele achar que me conhece, nunca
terá ideia que sou muito
mais do que
descreve. Esta história, na verdade, é sobre uma personagem que ele construiu, não
eu. Por
isso, gosto
de ser imperceptível para viver na liberdade dos olhares
dos outros. Realmente,
em parte,
está certo quando
disse que eu
escolho por quem quero ser notada, não perco tempo
com idiotas.
Assim como
ele não
pode saber de mim,
com certeza
desconheço muitos aspectos
de seu caráter.
Imagino e não deixo de, também, construir um personagem .
Às vezes, penso
coisas estranhas como
se fossemos reflexo um
do outro. Chega
de devaneios, preciso
ir ao aconchego
da minha família
para deixar de refletir bobagens.”
***
Ultimamente,
tenho um sonho
estranho. Decomponho-me em palavras e
estou preso no diário
de Sophie. À medida que ela
escreve, outras letras surgem e me torno outro. Logo, através deste sonho
deixo de ser voyeur
para ser observado. Amanheço assustado.