Imagem retirada da Internet
PAIXÕES
Minha tia morreu há poucos dias. Liberando-me a contar a história da nossa família.
As únicas lembranças marcantes dos meus pais: O cheiro de nicotina entranhada na roupa do meu pai e os passeios de bicicleta em volta da praça, que ele me levava na garupa. Da minha mãe, recordo-me de que ficava a maior parte do tempo na cozinha. O aroma do feijão, que ela preparava, invadia todos os cantos da casa.
Não sei o que aconteceu direito, era muito pequeno. Disseram-me que quando meu pai morreu atropelado, minha mãe se foi um ano depois. Falaram que ela ficou bastante deprimida e começou a se envolver com pessoas erradas. Um dia, um homem a esfaqueou. Não vi o corpo da minha mãe. Quando cheguei ao velório, o caixão estava lacrado.
Levei muitos anos para perdoá-la. Ela amou mais o meu pai do que a mim. Mas, agora, compreendo-a.
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Fui morar com uma tia solteirona, Jacinta, irmã da minha mãe. No início, a gente não se entendia bem. Com o tempo, um aprendeu amar o outro e começamos a viver bem.
Um dia, apareceu um estrangeiro na cidade, tinha o nome de um escritor argentino e jurava ser espanhol. A tia Jacinta ficou atordoada, quando o viu pela primeira vez. Ele usava uma blusa vermelha, mostrando o peito moreno e uma corrente grossa de ouro. Andava com seu violão nas costas, tocando em bares e nas serenatas.
Tia Jacinta começou a mudar de comportamento. Chegava em casa arfante, vivia rezando e ficava me abraçando. Sabia que era o maldito espanhol. Ouvia de algumas pessoas, que ele era uma farsa. Realmente, até hoje ele foi um enigma. Do mesmo jeito que apareceu do nada, evaporou-se. Tia Jacinta nunca mais pronunciou o seu nome.
Ficou triste, não queria sair de casa. Eu imaginava planos mirabolantes de vingança contra o maldito espanhol. O tempo passou, precisávamos sair da cidade. Todo mundo nos olhava feio. O ventre da tia Jacinta crescia a cada dia.
Vendemos a casa e fomos para o Rio de Janeiro. Um tio morava lá. Ele reservou um quartinho para gente. Para retribuir, comecei a trabalhar no seu armazém. Já a minha tia, ajudava a cunhada a costurar para fora.
Quando nasceu Ana, tive muito afeto por ela. Tia Jacinta lhe deu este nome, em homenagem a mãe dela, minha avó.
Sempre gostei de ler e escrever. Um dia, disseram-me que era escritor. Até então, não sabia. Recebi convite para trabalhar em outro Estado. Fui.
Alguns anos se passaram, voltei. A menina que eu conhecera, transformou-se numa moça muito bonita. Quando nos reencontramos, percebi que minha tia estremeceu. Perguntei se não estava se sentindo bem. Ela disse: - Tive mau presságio.
Não liguei. Continuei a olhar para Ana.
***
Um grito de pavor ecoou pela casa: - Vocês são primos! Não podem-. Minha tia desesperada olhava para mim e sua filha. O meu tio e sua mulher tentavam acalmá-la. Ana começou a chorar, mas estava decidida a assumir o romance comigo. Sempre foi mais forte do que eu. Foi ela que me pôs contra parede:
- Você vai assumir o que sente por mim, ou não? A mãe tem que entender. Eu e Alberto vamos ficar juntos.
Pegou a mala no quarto e a minha mão. Fomos embora, mas preocupados com a tia Jacinta. Estávamos saindo escondidos faz algum tempo
O rompimento durou três anos. Mandávamos cartas e convites para passar um tempo em nossa casa. Ela, neste período, nunca respondeu. Quando o nosso filho Lúcio nasceu, enviamos uma foto dele. Sem avisar, minha tia apareceu num domingo chuvoso e nunca mais foi embora. Tia Jacinta faleceu tranquila. Sabia que podia ir em paz.
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Fato curioso, dias depois da morte da minha tia, Lúcio encontrou debaixo do colchão da cama da tia Jacinta uma foto do tal espanhol com dedicatória e um bilhete. Estavam escritos num castelhano de origem bem duvidosa:
" Para siempre recorde de mim e as tardes calientes, que passamos juntos. Amor, me voy. O seu sobrinho achará outro lugar para ficar. Venha comigo, largue tudo. Só quiero viver contigo.
Ass: Julio Cortazár"